terça-feira, 25 de outubro de 2016

tudo o que é especialmente bonito agora não era especialmente nada antes. a marca de batom na chávena de chá. os joelhos moídos. a manta a desfazer-se.
é isso, antes era tudo especialmente nada. os nadas eram isso mesmo porque havia um maior, havia uma coisa e um centro - se não fosse centro era moldura, mas que se foda o que era porque o que importa é que estava lá e o verbo "existir" não se conjugava no passado.
quando se muda o tempo - acrescenta-se-lhe uma ausência ou três ou todas - têm de se mudar as vontades. agora olha-se para os nadas que são os mais bonitos de todos. a marca de batom na chávena de chá. os joelhos moídos. a manta a desfazer-se. imortaliza-se, imprime-se nos neurónios, revela-se no coração.
quando não se tem um tudo, o nada é mais bonito. perdoem-me a repetição, mas não há sinónimos para verdades absolutas.
estar sozinha é uma sem-vergonhice de detalhes. vê-se a vida como um filme porque há que manter um romantismo ou dois. o fumo sai da caneca em câmara lenta e o ato de estar deitada na cama durante mais de 24 horas é uma espécie de timelapse demoníaco cuja banda sonora é uma filha da puta de um sentimento de culpa.
nem tudo é trágico, claro. há uma certa leveza em não ter de cortar as unhas dos pés quando atingem um tamanho indecente. ou em beber uma garrafa de douro em menos tempo que o socialmente aceitável. ou em não ter testemunhas quando se ignora deliberadamente uma chamada.

não ter ninguém para amar é um jorro de palavras de cinza. coisa nenhuma faz demasiado sentido e andar às aranhas é a única forma de desfilar. escrever é a única maneira de respirar. tudo o resto é tempo. marca de batom na chávena de chá. joelhos moídos. manta a desfazer-se.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

olha, olá. vi-te agora a bater os bifes lá ao fundo, na cozinha, como se o destino da humanidade dependesse da carne macia e percebi que te quero em todas as vidas.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

empresta-me esse livro que está aí de ombro de fora da estante, intocado pelo óleo das mãos. empresta-me agora que acabei de fechar o objeto quase e tenho ganas de letras e de génios que descem ao papel de quando em vez.
empresta-me lá. um dia devolvo-te a capa mole e a vontade dura.

domingo, 18 de setembro de 2016

chamei-lhe o meu restaurante. está cheio de turistas. não é nada de especial. massa feita no ponto. pouco mais.
aborrece-me passar horas em museus para ser testemunha de génios mais inteligentes que eu.
também não quero fingir que sou daqui. quero fingir que sou de lá e moro aqui. 
do you need something milady? não, só de tempo. e de parágrafos. gostava de escrever poesia mas precisava de mais parágrafos ou de uma vida com uma métrica decente.
fui sempre ali. tem toalhas aos quadrados, flores de plástico e velas elétricas. mas não tem vertigens nem gorjetas. não tem crianças, também. passo o tempo a ler. a ver pessoas tropeçarem na calçada e na vida. a fingir que gosto de estar sozinha, que estou numa viagem de autodescoberta quando tudo o que eu queria era saber a história do empregado indiano que arrasta as trombas no chão mal encerado.
saio e sento-me quase no mesmo ponto dos degraus do Duomo a escrever livros na cabeça. esqueço-me deles todos quando me lembro que não estás aqui. merda pra ti. queria que estivesses aqui. queria que estivesses em todo o lado porque o dia cheira sempre melhor quando estás à distância de dedos entrelaçados. a culpa disto é tua, o amor é o meu incenerador de palavras. acendo um cigarro com o outro. se calhar um dia alguém vai pagar bilhete para atirar moedas no ponto exato onde eu os apago. se calhar não.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

acordo a tremer, agora. não é como antes, em que o sono não vinha mas as insónias eram poéticas naquela forma feia de auto-destruição. isqueiro aceso (fósforos, quando havia a necessidade de ser mais dramática) e pulmões cheios de merda. sentava-me à beira daquele fosso de janela com as mãos de céu.
mas não é como antes, agora. é pior, mesmo quando eu achava que não me podia sufocar mais no sarro da noite. estava a salvo, agora. adormecia na tua pele e não sonhava cor-de-rosa mas também não sonhava nada. era o infinito, mas não é como antes, agora. afinal a tua pele queima e eu já não quero voltar. hoje durmo sozinha.